quarta-feira, 19 de março de 2014

Modernidade e o culto do Eu


Nas sociedades antigas, era comum vermos as pessoas se sacrificando por realidades que consideravam superiores a si mesmas, como a família, a sociedade, ou mesmo ideais como honra, justiça, etc. Na Grécia, os cidadãos eram educados num conceito de virtude que se chamava 'Areté'. Isto fazia com que o grego vivesse em função da cidade, e que a maior honra de um grego fosse morrer em combate em defesa do seu povo, de modo que, quando eles voltavam das guerras, as suas mulheres, que os estavam esperando, faziam festa se eles não retornassem, pois perecer em combate era um modo de completar a sua formação moral.

Algo similar ocorria com os antigos samurais do Japão. Se, numa luta, um deles perdesse e não morresse, ele considerava que manter-se vivo seria desonrar a si mesma, à sua família e à sua comunidade. Deste modo, eles realizavam o Haraquiri, ritual onde eles se suicidavam com a ajuda de um amigo samurai.

Haraquiri Samurai

Em ambos os casos, vemos que o sujeito individual está a serviço de realidades que ele entende mais nobres que a própria vida. Os primeiros cristãos também tinham essa prática: para eles, era a suprema honra morrer por Deus. De novo, a idéia de que a vida pessoal deve estar a serviço de algo que os ultrapassa.

Na sociedade moderna, ao contrário, as pessoas acostumaram-se a viver somente para o próprio eu. O que há de mais importante é satisfazer às próprias vontades, aos próprios caprichos. Os amigos são mantidos enquanto podem proporcionar prazer. Os relacionamentos avançam rapidamente para o contato sexual porque o que importa é satisfazer-se. Os casamentos se dissolvem facilmente porque a idéia de sacrifício saiu do horizonte das pessoas, e em seu lugar estabeleceu-se a idéia de que o Eu é o centro do mundo. A própria idéia de Deus tornou-se somente um meio para adquirir riquezas, poder, status, etc.

A que se deveu tão radical mudança nos costumes? Quando chegamos a um ponto, é preciso observarmos qual o caminho que a ele conduziu. E, ao olharmos a história, é possível perceber alguns eventos que pelo menos influenciaram esta mudança de mentalidade. Dentre eles, citamos somente três:

- A Reforma Protestante (1517) - Esta reforma aconteceu porque um monge agostiniano chamado Lutero, descontente com alguns ocorridos locais, resolveu romper com a Igreja Católica e, no intuito de atacá-la, elaborou as chamadas 95 teses. O que nos importa nisso tudo é a mudança de perspectiva que ele provocou com relação à Sagrada Escritura. Antes dele, a Bíblia era sempre interpretada e ensinada pela Igreja Católica. Além disso, era dificílimo alguém ter uma bíblia pelo simples fato de que, não havendo ainda a imprensa, não tinha como imprimir bíblias e levá-las para casa. O único modo de tê-las era pedir a um monge copista para copiá-la inteira, o que demorava e custava caro, ou, então, copiá-la a própria pessoa de próprio punho. Obviamente que, além de nem todo mundo saber ler e escrever, menos ainda tinham disposição de fazer tamanho esforço. Assim, as pessoas tomavam conhecimento do conteúdo bíblico através das Liturgias católicas. Lutero, contudo, traduziu a Bíblia para o alemão, de modo que as pessoas agora podiam lê-la na sua própria língua, pois, antes, a Bíblia estava sempre em latim. Nesta mudança, Lutero dizia que os simples leigos não necessitavam mais da hierarquia da Igreja para compreender as verdades bíblicas. Bastaria que eles lessem por si mesmos e o Espírito Santo lhe ensinaria pessoalmente. Ora, isso gerou nas pessoas a idéia de que elas tinham um acesso privilegiado a Deus e que, portanto, não precisavam mais da Igreja. A consequência foi uma consciência aumentada do valor do próprio eu, o que também representou uma gênese de individualismo.

- Renascimento e Invenção da Imprensa - Por volta de 1439, o gráfico alemão Johannes Gutemberg inventou a primeira máquina de impressão, o que viria, mais tarde, a revolucionar a cultura. A partir desta invenção, alguns conteúdos culturais próprios da sociedade antiga - sobretudo Grécia e Roma - puderam ser divulgados e lidos. Antes disso, toda a educação ficava por parte da Igreja. As universidades, criadas por ela, obviamente estavam sob seu domínio. As crianças não tinham outra alternativa a não ser estudar nas escolas vinculadas aos mosteiros. Isto se dava não por qualquer estratégia de dominação da Igreja, mas porque todas as iniciativas educativas vinham por meio dela. Agora, porém, com a divulgação destes conteúdos antigos, as pessoas podiam ter a possibilidade de terem uma auto-educação, isto é, podiam aprender sem necessariamente pôr-se sob a influência da Igreja. Isto favoreceu também uma idéia de autonomia intelectual e aumentou, também, a idéia da importância de si mesmos, já num tipo de educação que ia se tornando progressivamente secular - isto é, não religiosa.

- Iluminismo - foi um movimento intelectual ocorrido no século XVIII, sobretudo na França. O termo "Iluminismo" ou "Século das Luzes" foi usado para contrariar a Idade Média que eles chamavam de "Idade das Trevas". As trevas aí se referiam à idéia de uma educação vinculada e submetida à religião. Na modernidade, no entanto, eles diziam que a razão estava solta e que podia desenvolver-se à vontade sem os limites impostos pela religião. Daí que as "luzes" do iluminismo representavam a razão humana, que, segundo acreditava-se, agora iria poder levar a humanidade um novo nível de civilização, já que havia se livrado da 'superstição religiosa'. Isto significou uma confiança exagerada na razão pessoal, e como a razão é algo individual - cada um tem uma -, as pessoas passaram a creditar um valor exacerbado ao próprio Eu.

Estas são apenas algumas das influências históricas que geraram a percepção característica da modernidade, que é uma atenção privilegiada ao próprio eu.

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